.Reduzir férias judiciais seria "comprar uma guerra"
O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) criticou, ontem, a ideia de redução das férias judiciais, considerando que, se fosse para "levar a sério", o Governo estaria a comprar uma "guerra" que os juízes não pretendem.
Se a questão das férias judiciais fosse realmente para levar a sério, não seria pela óbvia falta de diálogo que o poder executivo estaria a comprar uma 'guerra' que a magistratura judicial não deseja, mas que vende barata", disse Nunes da Cruz, no discurso da cerimónia de posse como presidente do STJ.
Segundo o presidente do STJ, "ciclicamente o poder político - o poder executivo em especial - vem a terreiro reparar nas férias judiciais e declarar a necessidade de estabelecer uma espécie de equidade em relação à regra geral do Estado, com o pretexto de serem recuperados atrasos processuais", o que levanta outras questões ainda sem resposta.
"Será desta que os magistrados judiciais ficam com um mês de férias estabelecido? Mas férias mesmo? Aquele direito normal a férias normais, como os outros e não às enviesadas férias judiciais?", questionou Nunes da Cruz.
"Se assim fosse, os juízes teriam finalmente direito à sua vida privada no termo de cada dia de trabalho, direito a fins-de- semana em família e direito a férias com aqueles que tantas vezes passam o ano separados, por força da enorme mobilidade das colocações. Sobretudo, deixariam de andar com toneladas de processos em casa, não raro a aguardar os fins-de-semana e períodos de Verão para encontrar espaços de tempo e de dedicação" para resolver casos mais extensos e complexos, observou.
Para o presidente do STJ, "não se devia tratar, portanto, de reduzir a ideia peregrina das férias judiciais tal como se anuncia, mas sim a de estender aos tribunais a normalidade do direito a férias que é a regra geral".
E isto podia parecer irrecusável, mas tem-se por indesejável. Como indesejável seria falar-se do acesso dos juízes a outras actividades remuneradas, à semelhança do que é possível na administração pública em geral. Corria-se o risco da funcionalização dos juízes, remetendo aos titulares de um órgão de soberania ao estatuto de funcionários públicos", argumentou.
in JORNAL DE NOTÍCIAS
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Presidente do Supremo lança avisos ao ministro
O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) aproveitou ontem o discurso de tomada de posse para lançar os primeiros avisos ao ministro da Justiça, Alberto Costa, sobre a proposta do governo em reduzir as férias judiciais. "Se os defensores da solução não vêem nela uma boa dose de populismo e demagogia, não deixarão de reconhecer, pelo menos, que ela aparece isolada entre inexplicáveis silêncios sobre tanto que fazer", declarou José Nunes da Cruz.
As críticas do presidente do STJ à redução das férias judiciais foram de tal forma contundentes e perceptíveis que, presente na cerimónia, Alberto Costa saiu do STJ em marcha rápida, declarando apenas aos jornalistas não querer "prestar declarações". José Nunes da Cruz não se ficou por aqui "Se a questão das férias judiciais fosse realmente para levar a sério, não seria pela óbvia falta de diálogo que o poder executivo estaria a comprar uma 'guerra' que a magistratura judicial não deseja, mas que vende barata."
Até porque, recordou o juiz conselheiro, "ciclicamente o poder político vem a terreiro reparar nas férias judiciais e declarar a necessidade de estabelecer uma espécie de equidade em relação à regra geral do Estado". Para Nunes da Cruz, "não se devia tratar de reduzir a ideia peregrina das férias judiciais tal como se anuncia, mas sim a de estender aos tribunais a normalidade do direito a férias que é a regra geral".
in DIÁRIO DE NOTÍCIAS
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Texto integral do discurso do Presidente do STJ
Pode ser consultado aqui, no site da ASJP. .
Medidas propostas pela ASJP ao Ministro da Justiça
Ilustríssimo Ministro da Justiça:
Aproveitando esta primeira reunião com vossa Ex.ª, apresentamos esta nota sumária, com um conjunto de medidas, na perspectiva da ASJP prioritárias, convictos quer da sua oportunidade quer da sua justeza para fazer face aos problemas da Justiça. São exequíveis, capazes e adequadas a produzirem resultados positivos, a curto ou médio prazo, e para além disso, possíveis de enquadrar e manter num âmbito mais alargado das reformas necessárias.
A.Acção executiva: É urgente encontrar soluções para a grave situação que se verifica relativamente à acção executiva, praticamente de bloqueio do sistema, não só derivado à acumulação de dezenas de milhares de requerimentos executivos por abrir e tramitar, mas também pelo insignificante número de penhoras realizadas. A situação existente é bem mais grave do que a existente antes da entrada em vigor da reforma executiva e, caso não sejam tomadas medidas imediatas, agravar-se-á a um nível insustentável.
B.Instalações de tribunais: É absolutamente necessário fazer um levantamento dos casos em que a insuficiência ou deficiência das instalações existentes, quer na 1.ª instância nos tribunais superiores, comprometem o exercício de funções em condições mínimas de dignidade, inviabilizando até a produtividade e pondo em risco a segurança e a saúde de todos quantos lá trabalham.
C. Criação e instalação de Tribunais de Instrução Criminal em cada um dos círculos judiciais: Como imperativo de uma organização judiciária compatível com comando contido no art.32º, nº4, da C.R.P., de modo a assegurar-se a cobertura total do território nacional por tribunais de instrução criminal, com competência plena e a nível de círculo judicial, dotados de secretaria judicial própria e dos meios próprios e necessários à prossecução dos seus fins.
D. Afectação de um funcionário judicial ao Juiz: Para apoio de secretariado, com a finalidade óbvia de libertar o Juiz de determinadas tarefas para o exercício da função de julgar.
E. Justiça penal: As alterações que se impõem em matéria de processo penal, e que têm constituído temas de debate generalizado, só fazem sentido desde que inseridas no âmbito duma revisão global do respectivo código que, entre outras medidas, considere que na audiência de julgamento, as declarações do arguido prestadas nas fases de inquérito ou de instrução, devem constituir meios de prova válidos para a formação da convicção do tribunal na motivação probatória da matéria de facto, desde que prestadas perante o Juiz de instrução; e, que consagre o princípio da sentença simplificada em caso de confissão do arguido ou de posterior aceitação dos factos considerados provados pelo tribunal, sendo aquela limitada à identificação do arguido, fundamentação de facto e parte decisória.
F. Justiça cível: Aqui reside precisamente um dos estrangulamentos maiores do nosso sistema judiciário. Assim, pugnamos por soluções legislativas com vista a retirar dos tribunais a elevadíssima percentagem de processos para cobrança de dividas dos grandes grupos económicos (cerca de 60%), consumindo parte significativa dos meios humanos e logísticos, com elevado custo para o Estado e manifesto prejuízo para o bom funcionamento do sistema; pugnamos, ainda, por reformas que visem pôr termo ao excessivo formalismo de que o nosso processo civil se encontra imbuído, como também da própria filosofia que está subjacente ao respectivo código; justamente por isso afirmamos a necessidade de substituição do Código de Processo Civil vigente, visando a simplicidade processual e a prevalência da justiça material sobre a formal, porventura com uma forma única de processo, que preveja uma fase de mediação. Pensamos, também, que será uma boa solução a possibilidade de decisão através de sentença simplificada, sem prejuízo de fundamentação jurídica mais extensa em caso de recurso.
G. Apoio judiciário: O actual regime de apoio judiciário não garante a qualidade desejável do patrocínio e é extremamente dispendioso. Ao cidadão que dele pode beneficiar, deve igualmente ser garantida a qualidade do apoio judiciário, aferida em função da competência e do empenho do patrono nomeado. Ora, a pretendida qualidade do patrocínio nem sempre está assegurada, desde logo porque na maior parte dos casos o patrocínio judiciário é assegurado por advogados com pouca experiência profissional, quando o direito é cada vez mais especializado. O cidadão ficará melhor servido por um corpo de defensores públicos, recrutados de entre advogados, selectivamente escolhidos, dotados de formação, apoiados com meios e com autonomia técnica consagrada na Lei, no âmbito de uma orgânica em que a Ordem dos Advogados tenha intervenção.
H. Gabinetes de Imprensa: É urgente criar Gabinetes de Imprensa junto do CSM e dos Tribunais (a definir quais), a fim de garantir uma informação isenta, objectiva e responsável sobre a actividade dos tribunais, necessária para uma maior credibilização da justiça perante a opinião pública.
I. Formação das Carreiras Jurídicas: Em separado, mas após um tronco comum a nível universitário, vocacionado para as profissões forenses. No caso das magistraturas, com a opção dos candidatos por uma ou outra delas (Judicatura ou Ministério Público) feita inicialmente, de modo a que possa investir-se mais e melhor nas especificidades funcionais de uma ou outra das profissões em causa.
J. Feitura das Leis: Uma legislação frequentemente inflacionada e defeituosa e, em muitos casos, com a entrada em vigor precipitada, são realidades reconhecidas e a exigir especial atenção do legislador.
K. Alçadas: É urgente rever as alçadas, quando é certo que os valores vigentes, introduzidos há quase seis anos, já então foram fixados em montantes consideravelmente abaixo do que seria razoável.
L. Justiça laboral: A precariedade do emprego, o trabalho de menores, e o trabalho de estrangeiros, são áreas específicas em que persistem as ilegalidades, e são temas de que a sociedade democrática se tem injustificadamente demitido, merecendo a atenção, desde logo, ao nível de uma eficaz fiscalização.
M. Justiça de Família e Menores: A Lei Tutelar Educativa e a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo carecem de ser revistas com a finalidade de simplificação da sua tramitação processual. Oferecem uma complexidade formal injustificada e desnecessária. As estruturas de apoio devem ser reforçadas e agilizadas, de modo a garantirem a necessária resposta em tempo útil, quer para execução da decisão quer para uma melhor solução para cada caso concreto.
N. Justiça Administrativa e Fiscal: O SITAF (Sistema Informático dos Tribunais Administrativos e Fiscais), contrariamente aos fins que se visavam alcançar com a sua implementação, vem apresentando deficiências várias que, salvo excepções, tornam o processado muito mais moroso, exigindo até uma duplicação de processos: digitalizado e em papel. Os custos iniciais de implementação e os derivados das medidas para suprir as deficiências são elevados. Precisamente por isso, é urgente a criação de uma comissão independente, integrada por profissionais do foro e especialistas de informática, que rapidamente façam um levantamento dos problemas e procurem encontrar soluções. A redistribuição de magistrados por tribunais deve ser repensada, pelo menos ao nível de Lisboa, quer nos tribunais Administrativos quer nos Fiscais, já que se mostra inadequada, porque insuficiente, para o número de processos entrados.
O. Segurança junto dos tribunais: É necessário implementar esquemas de segurança, a definir face às necessidades de cada caso concreto, mas que assegurem uma segurança efectiva nos tribunais, quer para os profissionais do foro quer para o próprio utente.
Lisboa, 6 de Abril de 2005.
in ASJP.PT
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A reforma da justiça penal
POR MANUEL SIMAS SANTOS
JUIZ CONSELHEIRO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Impõe-se a inversão do rumo actual quanto ao valor dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que uniformizam a jurisprudência e que consentem, no domínio penal, que um juiz de 1.ª instância possa, no dia imediato à publicação do acórdão de uniformização, recusar o seu cumprimento, com base em argumentos já ponderados, desencadeando-se depois um pesado e complexo mecanismo de controlo.
Do programa do Governo para a justiça tem sido dado todo o destaque à redução das férias judiciais de Verão. Muito foi dito sobre essa questão, mas o que sobreleva é a sua natureza de afirmação emblemática da vontade de intervir no domínio da eficácia da justiça.
E deve reconhecer-se que esse é um ponto fundamental sobre o qual devem intervir, não só o Governo e a Assembleia da República, com a adopção de medidas que permitam a sua promoção, mas também os magistrados e os respectivos conselhos superiores, interiorizando, ainda mais, a ideia de que a eficácia do sistema não pode deixar de ser sindicável, sem que isso signifique diminuição da independência do poder judicial.
As medidas que sejam tomadas não podem deixar de ser, diferentemente do que é hábito entre nós, acompanhadas de perto, de forma a serem corrigidas ou desenvolvidas, se necessário, em tempo útil. Medidas, já afloradas em público, como o redesenho do mapa judiciário podem contribuir, sem dúvida, para a eficácia, mas, pela sua complexidade e pelas resistências que inevitavelmente geram, devem ser antecedidas da adopção de regras de aplicação imediata que permitam ao Ministério da Justiça e aos conselhos superiores ensaiar soluções provisórias de agregação ou divisão de comarcas, que antecipem a reorganização judiciária e confiram ao sistema a plasticidade exigida. Com o mesmo objectivo impõe-se a urgente revalorização das procuradorias da República e dos respectivos procuradores, como unidades intermédias fundamentais da estrutura do Ministério Público, dotadas de meios e com uma definição muito mais clara das suas funções e poderes.
Mas, como as hesitações do investimento estrangeiro nos sugerem, a eficácia da justiça postula, também, uma maior previsibilidade do desfecho de um eventual litígio judicial. Daí que se imponha a inversão do rumo actual quanto ao valor dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que uniformizam a jurisprudência e que consentem, no domínio penal, que um juiz de 1.ª instância possa, no dia imediato à publicação do acórdão de uniformização, recusar o seu cumprimento, com base em argumentos já ponderados, desencadeando-se depois um pesado e complexo mecanismo de controlo. Tudo aponta, pois, para a necessidade de reforçar a força obrigatória para os tribunais judiciais dos acórdãos uniformizadores da jurisprudência. Mas também a eficácia ligada à agilidade do sistema impõe que, no crime, os conselheiros possam desencadear por si, em momento oportuno, a fixação de jurisprudência.
A "monitorização" de que já falámos também passa pelo reconhecimento, compreensão e exportação das boas práticas, que também se encontram a todos os níveis do aparelho judicial, e pela consideração da experiência dos operadores judiciários, designadamente pelos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, dada a sua especial tarefa de velar pela correcta aplicação da lei.
Neste domínio, importa realçar que o Partido Socialista, uma vez desencadeado, durante o Governo Barroso, o processo de revisão do Código de Processo Penal, teve em devida conta, no projecto que apresentou, o longo texto elaborado pelos conselheiros das secções criminais, o que não aconteceu com o Governo e os outros partidos. Embora se não concorde com a parte inicial desse projecto, designadamente no que se refere à posição processual e poderes do Ministério Público, num modelo que se afigura de difícil compatibilização com a Constituição, não se pode deixar de salientar a atenção prestada aos elementos fornecidos pelos juízes do Supremo Tribunal de Justiça e ao esforço desenvolvido para procurar resolver os problemas detectados, esforço que se espera não seja agora esquecido.
Mas a eficácia pode ainda ser objecto de consideração noutros planos, que a evolução jurisprudencial recente tem aberto. Com efeito, tem-se verificado uma tendência de "jurisdicionalização" do inquérito cometido ao Ministério Público, que não se vê, designadamente à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que vá regredir. Mas, grande parte das provas recolhidas no inquérito, assim tornado menos ágil, não valem, apesar disso, em audiência de julgamento, o que leva a perguntar se não faz sentido reconsiderar outras formas mais simplificadas de investigação criminal, designadamente para a criminalidade menor, como o inquérito preliminar já ensaiado entre nós (Ds.-Ls. 605/75, 377/77 e 402/82 e Lei 25/81), devidamente actualizado, assim se colhendo frutos da experiência entretanto adquirida pela Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana num inquérito que perderia o seu formalismo e poderia constar de um mero relatório detalhado das diligências efectuadas que habilitasse à dedução da acusação ou arquivamento pelo Ministério Público.
Também a ideia, construída pela jurisprudência, da necessidade de documentação da prova em julgamento, mesmo com tribunal colectivo, alimentada pela ideia do duplo grau efectivo de jurisdição em matéria de facto, parece retirar razão de ser à própria existência do tribunal colectivo: mais fiabilidade da apreciação da prova assegurada por três juízes, que é agora substituída por reexame mais amplo da 2.ª instância. Seria assim de, por um lado, apurar as técnicas de documentação da prova, com recurso, v.g., a sistemas de reconhecimento de voz, e, por outro, acabar com os julgamentos com tribunais colectivos, libertando inúmeros juízes que permitiriam reforçar nas relações um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Finalmente, e no que respeita ao Supremo Tribunal de Justiça, importaria restringir os recursos, mediante regras claras, e reforçar o seu papel como uniformizador da jurisprudência, que voltaria a ser obrigatória para os tribunais judiciais, como se adiantou.
in PÚBLICO (edição impressa)