«A ideia de força, do domínio, da ditadura está latente nos partidos»
O advogado critica a excessiva mudança das leis, diz que «há uma preocupação em penalizar, agravar e regular aspectos de pormenor» e considera que em Portugal se abusa do uso das escutas telefónicas. Sobre a política do Governo para a Justiça, Pires de Lima «não acredita em nada que vem do ministério», sublinha que «não existe um método nem uma orientação definida» nas medidas anunciadas e acusa Alberto Costa de revelar uma «inconsciência» e «demagogia completa»
.O DIABO - Como avalia as medidas deste Governo para a área da Justiça? São avulsas como muitos dizem ou há vontade política de as concretizar?
ANTÓNIO PIRES DE LIMA - Não existe um método e uma orientação definida para que possamos compreender as medidas que têm sido anunciadas. Sabemos apenas (ou é o que deduzimos) que, a qualquer preço, se pretendem reduzir gastos e obter números para a estatística.
Qual é o grande problema do nosso sistema de Justiça?
O problema fundamental do sistema de Justiça é a formação dos agentes que intervêm em todo o processo, sejam magistrados do Ministério Público, advogados, funcionários ou juízes.
É uma crítica à má formação de todos esses agentes?
Exactamente. São mudanças que afectam todos os que trabalham na Justiça e não nos dá tempo para a preparação e formação. Muda-se o sistema de funcionamento sem dar tempo para se prepararem e formar. E alguns não têm possibilidade de se adaptar a estas mudanças. A única coisa que está bem patente é a redução de despesas com um objectivo marcado pelo Governo e que sobressai. A formação não conta.
Não há preocupação com a formação no sector?
Há quem se preocupe. O Centro de Estudos Judiciários, por exemplo. Mas que, ao mesmo tempo, faz uma formação que não resolve o problema que deriva do facto de as carreiras do MP e de juízes serem separadas. O juiz hoje chega mais cedo à carreira de magistrado judicial sem ter o traquejo que antes tinha. Isso ainda não foi resolvido. O próprio MP tem uma formação muito teórica e enfrenta o problema prático do dia-a-dia, estuda e volta a estudar, mas não resulta em soluções práticas substanciais. Sabemos que há uma «Operação Furacão 1 e II», mas quais são os resultados?
É por isso que a Justiça muitas vezes, em Portugal, é lenta?
A Justiça é lenta nesse aspecto. As pessoas que não conhecem o sistema vêem apenas o Processo Penal dos casos «Casa Pia», «Apito Dourado», etc. E o que vê é os que foram arquivados e que estão em julgamento há imenso tempo. A partir de uma determinada altura a lei permitiu um número ilimitado de testemunhas, alterando o que existia.
Porque é que isso mudou?
Cada pessoa que vai para o Governo quer deixar lá a marca pessoal, nem que seja um disparate.
É a chamada politização da Justiça?
Não é propriamente isso, mas são pessoas que têm as suas ideias e que não medem as consequências das mudanças que impõem.
O Governo prometeu a desmaterialização dos processos nos tribunais. Esse objectivo está a ser conseguido?
Isso é uma tragédia porque há imensas pessoas que trabalham há anos no sector e que não estão adaptadas às novas técnicas e isso limita o seu trabalho. Parece que, com isso, o Governo quer que nós saibamos menos de Direito e mais de tecnologia. E isso não foi previsto. Duvido muito que seja legal esta situação de se exigir que determinadas coisas sejam informatizadas porque daí resulta uma limitação ao exercício da actividade profissional.
A revisão em curso do mapa judiciário é a melhor?
Sempre ouvi dizer que havia que emendar nessa matéria. Não se justifica, em alguns casos, a existência de algumas comarcas até porque há maior mobilidade dos cidadãos, como também há muitas zonas desertificadas não se justificando aí a existência de um tribunal. Mas o Conselho Superior da Magistratura já atribuía a um mesmo juiz duas, três ou mais comarcas.
O que é que não devia ser mudado?
‘Uma das coisas que está constantemente a mudar é a legislação, não só a processual como alguma substantiva.
Há quem critique as revisões do Código Penal e do Código do Processo Penal. Como comenta estas alterações?
Causa-me uma enorme apreensão que o legislador considere situações penais novas com uma frequência tão grande como aquela que se tem verificado.
Está a falar de quê?
Da qualificação dos crimes e da própria penalização de determinados crimes. Há uma preocupação muito grande em penalizar, agravar e regular aspectos de pormenor. Deixou de haver um respeito pelos princípios, da ética e da moral e procura-se regular a vida do homem por proibições. Hoje tudo quanto não está proibido na lei é permitido. Procuram fazer mais leis. E depois aparece constantemente o Tribunal Constitucional a dizer que muitas leis são inconstitucionais. Diria que o legislador está mais preocupado com o detalhe do que com os princípios.
Porque é que existe essa preocupação excessiva em mudar as leis?
A impreparação das pessoas. Licenciados em Direito não era toda a gente mas eram-no muitas pessoas das camadas mais humildes da população que quando chegavam à vida profissional não se diferenciavam dos outros. Todos ingressavam na vida profissional por vocação. Hoje não é assim. A falta desta é irreparável. E isso tira a possibilidade de a pessoa exercer a sua vocação.
Já não se é advogado ou juiz por vocação?
Não. Mas sim por necessidade. E isso tem consequências gravíssimas.
E isso desprestigia a Justiça?
Necessariamente. Há pessoas que estão a fazer o que não sabem. E o que fazem é o necessário para auferir o salário ao fim do mês.
E a culpa é de quem?
O facto de se abrir as portas a toda a gente criou uma ilusão nos jovens. Procuram, e foi-lhes dado o canudo, como se este fosse o remédio de todos os males.
Justiça faz-se ponderando
As alterações regulares de tão importantes instrumentos do sistema judiciário «perturbam» o normal funcionamento do sector?
Enquanto não se deixar consolidar o que já existe e se mudarem as coisas apenas só por mudar, para que o nome do ministro venha na assinatura dos diplomas, não há hipótese. Por exemplo, tenho a sensação de que os magistrados mais novos são profissionais com uma grande preparação cultural porque a recebem não só na Faculdade e depois no Centro de Estudos Judiciários, mas não têm da vida o suficiente para se integrarem. A Justiça faz-se ponderando.
Há um consenso por parte dos «operadores judiciários» em considerar que a proposta da redução das férias judiciais foi apresentada como uma forma demagógica da salvação da crise da justiça. Houve mesmo ganhos de produtividade como garantiu o ministro?
Este ministro tem uma vantagem sobre todos nós que resulta em prejuízo: é que manda. Mas manda sem saber o que está a fazer e revela uma inconsciência e demagogia completa. E as férias judiciais foi a maneira de ele apresentar ao Primeiro-Ministro uma novidade que ele tinha obrigação de saber que não funcionava. Se alguma vez foi advogado sabia que esta medida não tinha o mínimo resultado prático. Ou devia saber!
É uma teimosia?
É uma obstinação. Aliás, é prática em Portugal quando um ministro sente que fez um disparate, não o emendar.
Por que razão o Governo elege esta proposta, como prioritária, quando há outros problemas bem mais graves?
Por uma simples razão. Para os cidadãos, ouvir dizer que os juízes tinham dois meses de férias o que não é verdade - é uma coisa que pega e mostra autoridade.
Quem são os mais prejudicados?
Não só os juízes como os advogados.
O Pacto para a Justiça vai resolver alguma coisa?
Não sei o que isso é. Sobre isso, acho que o Parlamento só se desprestigia quando se mete na Justiça.
Mas este acordo político-parlamentar não significa nada?
É capaz de significar alguma coisa. Mas a verdade é que ainda não vi medidas práticas no que respeita ao andamento dos processos e à formação das pessoas.
Como vê, em termos de política criminal, o facto de passar a ser a Assembleia da República a definir a, prioridade dos crimes a investigar?
Há uma lei geral a que os cidadãos obedecem - o Código Penal. A circunstância de se vir dizer em determinada altura que a investigação deve dar prioridade, em determinadas matérias, relegando as outras para um segundo ou terceiro plano significa que se está a fazer um Código Penal novo. Significa que uma maioria no Parlamento pode decidir de forma a aniquilar tudo o resto. Pode dar a sensação que há uns que são tratados de uma maneira e outros de outra. É um atentado aos princípios legais e mais uma forma de a política se intrometer no meio judiciário.
E cria-se, neste caso, mais uma promiscuidade entre o poder político e o poder judicial?
Mas o poder político está constantemente a meter-se na Justiça.
Como comenta a eventual criação de um Procurador especial para levar a julgamento processos prescritos?
Esta foi a última tentativa de intromissão do poder político no judicial. É uma insensatez terrível. A preocupação em criar a figura de um Procurador especial é querer ‘mais uma vez, lançar sobre os tribunais a responsabilidade daquilo que a investigação não fez.
Está a pôr-se em causa o MP e o próprio PGR?
Se um Procurador aceitasse o cargo de Procurador especial esse deveria ser corrido da magistratura porque aceitava um princípio de obediência fora dos princípios legais habituais para que foi educado.
Fica em causa a autonomia do MP?
Sem dúvida. E tanto é que já se começou a perceber que não haveria ninguém do MP que aceitasse esse cargo. E falou-se depois num a falar num jurista de mérito. Só que um jurista, se tivesse’ mérito, também não aceitaria o lugar, a não ser por obediência política. Determinadas forças políticas dizem mal dos plenários do tempo de Salazar -mas estão ansiosas para que volte um plenário com força. A ideia de força, do domínio e da autoridade e da ditadura está latente. Os partidos são democratas mas querem a maioria para fazerem o que querem.
Acha que esta proposta vai em frente?
Nenhum jurista que se preze aceitará este cargo’ sob pena de ser considerado por todos os outros um lacaio de um poder político qualquer.
Como comenta a norma, aprovada pelo PS no Parlamento para que a AR se possa constituir-se como assistente (ofendido) nos casos de homicídio qualificado contra membros dos órgãos de soberania, perante indícios apurados em comissões de inquérito parlamentar?
Tenho vergonha de mais essa interferência de pretensos justiceiros na Justiça. As comissões de inquérito parlamentar já se revelaram como processo de decisão política, não de Justiça.
«Está na moda falar em corrupção»
Tem-se falado muito no combate à corrupção. Desde o Presidente da República ao novo Procurador-geral da República. É uma questão de moda ou que se trata de uma preocupação verdadeira?
Está na moda falar nisso. Não é sem razão que se diz que o MP não tem meios.
Não tem?
Não tem meios mas, pior que isso é que durante anos foram retirados à Polícia Judiciária todos os possíveis e imaginários. Durante anos poupou-se meios na PJ, designadamente na formação humana e na admissão de pessoas de tal forma que a PJ não pode fazer mais do que faz. Neste momento surgiu o Furacão I» e ainda este não está resolvido e se apuraram responsabilidades e já estão no II e vão entrar no III. Chega-se a um ponto que é tanta coisa que não há meios humanos suficientes.
É por falta de meios que processos como a «Casa Pia», «Apito Dourado» e «Operação Furacão» se continuam a arrastar nos tribunais?
O tribunal em si quando está a julgar fá-lo com a celeridade que pode Quando se admite a hipótese de o MP ou a defesa apresentar 200 testemunhas está a criar-se um imbróglio porque os tribunais não podem julgar muitas coisas perante esse prisma. As pessoas não são as suficientes para resolver problemas desta latitude.
O caso mais recente das denúncias de Carolina Salgado de alegadas situações de corrupção desportiva, evasão fiscal, violação do segredo de justiça, agressões, perjúrio e fuga à justiça que envolvem Pinto da Costa é mais um exemplo disso?
Isto não se passa num País civilizado. O problema é que ninguém sabe quanto tempo se vai arrastar mais um caso como este.
A PGR faz bem em investigar este caso?
A Procuradoria não pode deixar de investigar.
Pinto Monteiro tem pela frente um mandato muito difícil, sobretudo tendo em conta a herança que recebeu de Souto Moura. Que espera do novo PGR?
Tenho, muita admiração pelo Procurador anterior como pelo Dr. Pinto Monteiro. O Sr. Procurador Souto Moura teve a fatalidade de não saber enfrentar os meios de comunicação. Mas segundo consta, Souto Moura, reorganizou e pôs em dia muitas matérias que provavelmente saíram a lume quando exerceu o cargo e que já existiam antes. A Pinto Monteiro basta que faça o que ele disse: ser igual a si próprio para fazer tudo aquilo que esperamos do PGR.
Voltando à corrupção. É um fenómeno que está alastrar-se na sociedade portuguesa?
Hoje em dia a ganância dos corruptos é maior. E há casos em que verificamos que aparecem pessoas a viver de determinada forma e com património que não é possível angariar normalmente.
De que forma é possível minimizar os efeitos?
Se houvesse vontade de averiguar e não houvesse certos pactos talvez as coisas melhorassem.
Como vê a criação de uma Unidade Nacional Contra a Corrupção, anunciada na semana passada pelo Governo, que ficará sob a alçada da Polícia Judiciária e dará especialmente atenção ao combate à corrupção desportiva?
Não tenho nada a opor-me solução desta natureza.
Têm-se falado muito da relação dos juízes com o mundo do futebol: É algo perigoso?
É extremamente perigo magistrados deviam continuar a preservar a sua independência.
Como comenta a escolha de Maria José Morgado, conhecida como «a justiceira», para conduzir as investigações do processo «Apito Dourado»?
Faço votos para que obtenha resultados compatíveis com a fama que tem e a propaganda que lhe fazem.
Um outro problema é o das execuções que estão a entupir os tribunais...
É uma quebra da soberania de Estado. A execução, na parte cível, era o momento em que o Estado se impunha ao cidadão, obrigando-o a pagar.
Em Portugal abusa-se escutas telefónicas?
Do que tenho ouvido abusa-se...
Que balanço faz da crise do estado da Justiça e de toda a política para o sector?
Enquanto houver um homem ou homens que vão para determinadas funções para se servirem eles e não para servir os outros, nada vai mudar. Há sectores deste Governo que não faço a mínima ideia de como funcionam. Em relação à Justiça não acredito em nada do que vem do ministério. Um Sr. Ministro que começa com as medidas das férias judiciais...
O poder político está a contribuir para agravar os problemas da Justiça?
No poder político só se diz mal uns dos outros. E o exemplo da ordinarice são as discussões na Assembleia da República. Quem quiser ver o que antes existia no mercado da Ribeira em ponto grande vá ao canal Parlamento e veja o que as pessoas dizem uns dos outros É um descrédito total. Não há elevação nas discussões a não ser na excepção. Quem é o político em que se acredita hoje em dia?
Quais as suas expectativas para o futuro do sector da Justiça?
Estou convencido que se e quiser investir na formação das pessoas, na ética, nos princípios de uma preparação vocacional, com tempo recupera-se muito do que perdemos.
In O Diabo, 19/12/06, pp.12,13