Discurso da tomada de posse de Sua Excelência, o Presidente do STJ, Juiz Conselheiro Noronha Nascimento
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«Dentro em pouco, vão-se perfazer quarenta anos sobre o dia em que entrei no mundo dos Tribunais.
Quarenta anos recheados de casos, circunstâncias, memórias e sensações que davam para uma obra-prima cinematográfica do neo-realismo italiano.
Desde o réu que morreu à minha frente no julgamento em que ia ser absolvido e que não aguentou a acusação feita, à sobrinha - neta do grande Camilo que, indignada, tentou desforço por o Tribunal não valorar mais a sua palavra do que a palavra de um humilde rural, aos julgamentos dos anos de brasa com o Tribunal resguardado por uma cintura policial, ao momento de violência silenciosa e incomensurável quando (numa inofensiva acção de propriedade) o autor se apercebeu de repente da infidelidade da sua mulher com o próprio réu, à velhinha viúva vestida de luto cerrado que na partilha por morte do marido olhava, com sorriso suave, para os meus 29 anos e me chamava o juiz - menino, à tarde mais dramática da minha vida profissional quando o Colectivo a que pertencia, fechado na sala durante seis horas seguidas, destilou desespero como três homens em fúria para decidir se condenava o réu por homicídio ou não, a 19 anos de prisão ou a nada, por tudo foi passando como o mais comum dos juízes que sentem na pele o desespero de um sistema que também os vai devorando.
Entrei nos Tribunais nos anos 60 a ouvir falar da crise da justiça; logo após o 25 de Abril, nos idos de 75 / 76, a crise da justiça era a manchete frequente dos jornais da época.
Hoje, trinta anos volvidos, o tema continua recorrente o que nos leva a perguntar o que há de estrutural em tudo isso.
A crise da justiça, tal como a percepcionamos relaciona-se basicamente com a morosidade processual que, com outros factores coadjuvantes, conduz hoje ao encharcamento dos tribunais.
Mas disso já nos falava de Bruges, no sec. XV, o príncipe D. Pedro, o das Sete Partidas, na célebre carta que daí enviou para o reino.
A morosidade na resolução do litígio, dizia ele em suma, é a denegação da justiça porque, quando aquele se decide, já o interesse que lhe subjaz desapareceu ou se modificou.
Nos anos 70 o bloqueio do Judiciário entroncava basicamente no desfazamento da orgânica dos Tribunais que a reforma de 78 resolveu parcialmente e no défice visível de magistrados.
Em Fevereiro / 75, quando cheguei ao Marco de Canaveses encontrei uma comarca sem juiz havia mais de um ano, situação que se reproduzia amiúde pelo país inteiro; Mogadouro terá provavelmente batido o record nesse desgoverno de então ao estar - se a memória não me trai - sete anos sem juiz num total de nove.
Hoje as causas são muito outras.
Hoje, o bloqueio judiciário é o produto final e confluente de muitos factores: do aumento generalizado de riqueza subsequente à adesão à União Europeia, do fim progressivo do estado - providência conjuntamente com a tendência permanente em judicializar todos os conflitos que surgem (ao arrepio da recomendação expressa do Conselho de Ministros do Conselho da Europa, de Setembro / 86), da concentração demográfica no litoral fazendo surgir dois mapas judiciários diferentes (o do litoral em panne frequente, e o do interior mais fluído e equilibrado), de reformas processuais falhadas (como a da acção executiva) ou adiadas (como a da investigação criminal) e, por fim, de uma política de concessão de crédito ao consumo que levou longe o endividamento familiar visível nas acções de dívida que canibalizam e corroem totalmente os tribunais representando mais de metade dos processos pendentes no país.
O bloqueio judiciário tem por conseguinte causas estritamente organizacionais e não de legitimação política como por vezes se pretende fazer crer - tal é o corolário a extrair.
Centrar o discurso na legitimação política para avalizar a alteração do modelo que temos é errar o alvo e passar à margem do efectivo saneamento do sistema.
Para superar a morosidade processual, e centrando-nos estritamente no plano de organização e gestão do Judiciário, perfila-se um conjunto de medidas possíveis cujos efeitos acumulados funcionariam provavelmente como o escoamento da barragem.
Em primeiro lugar, há que rever completamente a política de concessão de crédito sancionando (e por vias diferentes) os agentes económicos que não usam mas abusam dos tribunais com o seu crédito mal parado.
Sem isto não vale a pena chorar lágrimas de crocodilo; os tribunais só funcionarão - tenhamos bem essa noção - se houver a coragem política de os limpar do "lixo processual" que tudo entope, agindo a montante deles e regulando o comportamento dos agentes no mercado da concessão de crédito ao consumo.
A fluidez do Judiciário depende, por isso, de uma opção política que se situa antes e fora dos Tribunais, à nossa margem, e que contende com interesses de peso de agentes económicos que instrumentalizam o Judiciário para cobrar os seus créditos formigueiros.
Os Tribunais portugueses começaram a ser vandalizados com este tipo de acções a partir do Verão /87: começou-se com as seguradoras, e seguiram-se os leasings, as sfacs, os cartões de crédito, os telemóveis, a tv cabo, a netcabo e assim sucessivamente.
Se se auscultarem os mapas estatísticos de entradas de processos em Portugal desde 1992 até 2003, concluir-se-á que o aumento de distribuição processual sobe, anualmente, de forma regular e lenta no crime, no trabalho, nos menores, na família, enfim, em tudo o que não é cível; neste, a subida é abrupta atingindo taxas impensáveis e permanece, depois, elevada.
Enquanto na Alemanha, no decénio 88 / 97 o crescimento processual anual se operou a uma taxa que oscilou entre 2 e 5%, entre nós andou pelos 8 / 9%.
Na França, nos 35 anos anteriores a 2000 o cível aumentou três vezes e o crime quatro vezes; em Portugal, as entradas cíveis foram em 1992 de 266.123 processos e cinco anos depois (em 1997) cifravam-se em 485.210, ou seja, num aumento de cerca de 80% para o qual nenhum Judiciário está preparado.
A estabilização de distribuição processual nos anos seguintes nenhuma melhoria induziu porque, sem uma abordagem estrutural de fundo, a doença não só se manteve como se agravou.
Quando, em Maio / 98 participei em Paris em reuniões preparatórias de um grande colóquio que aí teve lugar em Janeiro / 1999 e contei o que se passava entre nós com a colonização do Judiciário pelas operadoras de telemóveis com dezenas de milhares de acções cíveis entradas em juízo em pouco tempo (era, à época, o que estava na moda), os juízes franceses e alemães presentes perguntavam-se, espantados, como foi possível tal acontecer sem o poder pedir contas sequer aos agentes económicos, autores desse flop.
Com tudo isto misturado, temos hoje (principalmente no litoral onde a concentração demográfica é intensa) tribunais que funcionam a velocidades incomensuravelmente diferentes.
Temos, nomeadamente, nas grandes Lisboa e Porto, juízos cíveis com 10/12 mil processos que se tornam pouco menos que incontroláveis para magistrados e funcionários; e temos varas cíveis - em cujos processos a politica de concessão de crédito pouco ou nada se reflecte - que tendem cada vez mais a agilizar rapidamente as sentenças finais.
São das varas (ou tribunais de circulo correspondentes) que partem em regra os recursos que chegam ao Supremo; e se alguns se reportam a processos que demoram anos temos muitos outros que são surpreendentemente rápidos fugindo ao estereótipo que a representação jornalística transmite publicamente, demandando não muito tempo entre a sua entrada em juízo na 1ª instância e a decisão final neste Supremo (cfr., revista 3541/05 entrado nas Varas Cíveis de Lx. em Janeiro/03 e decidido no S.T.J. em Janeiro/06; revista 3694/05, entrado nas Varas Cíveis de Lx. em Abril/02 e decidido no Supremo em Janeiro/06; revista 3759/05, entrado em Ponta Delgada em Outubro/03 e decidido no Supremo em Janeiro/06; revista 4033/05, entrada em V.N.Gaia em Maio/02 e decidida no Supremo em Fevereiro/06; revista 3843/05 entrada no T. Família do Porto em Setembro/04 e decidida no Supremo em Fevereiro/06; revista 4087/05, entrada em Braga em Abril/03 e decidida no Supremo em Fevereiro/06; revista 4338/05, entrada no T. Marítimo Lx. em Novembro/02 e decidido no Supremo em Março/06; revista 173/06 entrada em V.N.Gaia em Dezembro /02 e decidida em Março /06, etc., etc.)
É nesta encruzilhada de interesses divergentes que se coloca o problema da contingentação.
Não vale a pena pensar, sequer, na contingentação se não se resolver previamente o excesso do "lixo processual", porque a pendência excessiva inutiliza a racionalidade que está associada à contingentação.
Esta foi pensada como barómetro das necessidades da orgânica dos tribunais e, simultaneamente, como índice da produtividade do juiz a partir de uma distribuição racional de processos.
Daí que seja fácil fazê-la e levá-la à pratica num conjunto alargado de Tribunais com processos homogéneos na sua tramitação: tribunais de recurso, antigas corregedorias, alguns tribunais de circulo, juízos e varas criminais e, talvez, varas cíveis.
Mas naqueles outros onde pendem milhares e milhares de acções de dívida e nos tribunais de competência genérica com carga processual elevada e heterogeneidade procedimental, a contingentação é pouco menos que uma miragem numa noite de Verão.
A prova disto temo-la nós: em 2001, a solicitação ministerial, uma empresa conseguiu fixar quadros de contingentação para os processos criminais pendentes em Portugal concluindo, aliás, que todos os tribunais criminais e secções criminais dos tribunais superiores tinham processos em excesso numa percentagem que oscilava entre os 5 e os 22%; a seguir, o Observatório da Justiça não conseguiu contigentar o cível nos tribunais onde se reflectia a selva desregulada das acções de dívida.
Se nos lembrarmos ainda que estudos feitos no estrangeiro sublinham que o excesso de processos acima dos 20 % em relação ao máximo aceitável provoca diminuição de qualidade do serviço, teremos bem a dimensão da gravidade do monstro que nos inferniza.
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Em segundo lugar lidamos, hoje, com um mapa judiciário mais que ultrapassado.
A desertificação do interior e o excesso demográfico do litoral criaram dois mapas diferentes: o do litoral com tribunais sobrecarregados e frequentemente em panne; o do interior com tribunais funcionando, em regra, equilibradamente.
A litoralização da população não é um facto recente: começou no séc. XVl com a chegada do milho americano que, pelo seu alto valor nutritivo, permitiu o aumento exponencial da população mas só podia ser cultivado onde houvesse muita água, e agravou-se nos sécs. XVlll e XlX com as novas concepções de defesa militar e o abandono da linha dos fortes fronteiriços.
A manutenção do xadrez orgânico actual parece-nos impensável: torna-se essencial criar uma nova unidade geográfica - padrão que substitua a antiga comarca, mais ampla, mais abrangente que permita uma melhor gestão na mobilidade e disponibilidade do juiz sem ofender o princípio do juiz natural.
Qualquer mapa judiciário tem que levar em conta dois factores estruturantes: em todo o território, a mobilidade demográfica que as recentes vias rápidas permitiram; nas áreas metropolitanas das grandes cidades, as questões e os estrangulamentos urbanísticos que elas geram.
O primeiro factor (mobilidade demográfica) surge-nos bem expresso em alguns indicadores dos últimos censos; basta pensar, entre outros exemplos, que no litoral noroeste se assistiu a um deslocamento populacional inverso (isto é, do mar para o interior) ao longo das linhas fluviais (vales do Sousa, Tâmega e Minho) e que, em conjugação com outros factores, ajudam a explicar o aumento nessas áreas da criminalidade perigosa e violenta (cfr. o Mea Culpa de Amarante e os gangs do Vale do Sousa).
O segundo factor impõe que se responda a vários perguntas: se se pretende agrupar ou dispersar os tribunais no interior da urbe, se ficam no centro ou na periferia da cidade, se a cidade é geometrizada (como Lisboa) ou não (como o Porto), se o acesso aos tribunais é fácil ou não, se há metropolitano ou não, se as linhas de água se transpõem rapidamente ou não.
Mas pensar o mapa dos Tribunais implica também repensar os julgados de paz.
Estes só fazem sentido se forem complementares da justiça clássica, desritualizando o processo, apressando a decisão e embaratecendo o custo global do sistema.
É isso que não existe porque os julgados de paz estão enredados num nó górdio que ninguém desata.
Para se tornarem eficazes e mais baratos, os julgados de paz devem ter competência exclusiva em determinadas matérias; mas isso só é possível se forem geridos por um órgão com composição orgânica independente; porque o não são, permanecem com competência "delegada", presos a processos que se alongam porque acabam por ser decididos em recurso mais acima.
O cabodas tormentas só se dobrará quando os julgados tiverem competência própria e exclusiva, complementar da do tribunal comum, e o seu quadro de magistrados for gerido pelo C.S.M..
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Porque a morosidade processual é, como dissemos, o ponto confluente de muitas causas conjugadas, sanear as acções de dívida e reformular o mapa dos tribunais não é de certeza bastante.
Mas se, concomitantemente, se administrativizar a resolução dos conflitos de jurisdição e competência através do colégio de presidentes de tribunais de 2ª instancia (conflitos que são um cancro no labirinto garantistico do nosso modelo), se implementar nos grandes tribunais e nas grandes circunscrições a figura do juiz - presidente, responsável perante o Conselho, com poderes efectivos de gestão, gerindo os espaços e o equilíbrio de pendências processuais e - por que não? - tentando obter uniformização nas decisões processuais interlocutórias, se abandonar o quadro de juízes auxiliares e se apostar numa bolsa de juízes para todo o país mas em condições diferentes das actuais porque assim ninguém está disposto a ser nómada, se negociar protocolos de distribuição de risco nas indemnizações extra - contratuais (como se faz em países do centro da Europa), se optar pela formação especializada de magistrados como condição prévia da sua colocação em determinados tribunais e, em alguns casos, da sua promoção, se regressar o assento com força obrigatória através de um modelo que permita accioná-lo também pelos presidentes das Relações em caso de divergências importantes logo na 1ª instância e como salvaguarda imediata da segurança jurídica, estamos convictos de que o salto qualitativo do Judiciário português será grande.
A reforma da acção executiva (de inicio bem pensada e depois mal executada) serve-nos de exame de consciência.
Enquanto ela passou pelas mãos do juiz, os processos andavam devagar mas andavam e os credores recebiam; hoje, as acções executivas estão literalmente bloqueadas, só os grandes credores recebem enquanto o cidadão comum nada obtém e surgiu uma nova profissão forense na desconfiança criada pelo panorama geral da crise económica do país.
O fracasso da acção executiva não entronca em questões de legitimidade que a presença ou ausência do juiz dá ou retira; entronca em razões de figurino organizacional que faliu patentemente.
A conformação constitucional estruturante do poder judicial deve-se aos pais fundadores da 2.ª República.
Foram eles, foram os políticos que emergiram com o 25 de Abril -que tinham visto com os seus próprios olhos como o antigo regime condicionava e subalternizava os tribunais e podia préordenar a investigação criminal - que deram início à formação do modelo que, substancialmente, ainda hoje se mantém.
O processo de gestação, formação e legitimação política do Judiciário português iniciou-se logo em Junho / 74 com o diploma que fixou a forma de designação por eleição dos presidentes dos tribunais superiores (democratizando por inerência o antigo o Conselho Superior Judiciário) e findou em 1984, com a aprovação do primeiro ETAF, criando os tribunais administrativos e enterrando de vez as concepções monistas de raiz napoleónica. Pelo meio foram surgindo, entre o mais, o novo Tribunal Constitucional, o novo Conselho Superior da Magistratura e o novo M.º P.º.
As razões teórico - jurídicas que legitimaram as opções que os pais fundadores assumiram, ainda permanecem válidas nos dias de hoje.
Mau grado isso tem-se assistido a uma deslegitimação larvar e surda dos tribunais a que não escapa mesmo este Supremo, cúpula geral do sistema; processo filtrado, com frequência, em notícias vindas a lume na comunicação social e que só podem ser lidas como a mensagem criptada de poderes facticos.
Desde o acórdão deste Supremo (recurso penal n.º 3250/04) que recusou ao arguido (que assassinara a mulher) a atenuação especial da pena que ele pretendia, por "negligência culinária" ou por saídas a sós dela, condenando-o tabelarmente a 14 anos de prisão, e apareceu na imprensa exactamente ao contrário como se tivesse havido atenuação extraordinária e o Supremo estivesse fora do mundo; até ao acórdão que usou o conceito jurídico de "bom pai de família", oriundo do direito romano, usado comummente na ordem jurídica europeia e que varre áreas tão diversas como a definição da culpa nos acidentes de viação ou a origem de servidões prediais, e que foi apresentado mediaticamente como reflexo de uma visão quase neo - fascista da sociedade - tudo serviu para descredibilizar, deslegitimando, provavelmente para que a seguir se "legitime", credibilizando, uma nova estrutura constitucional diferente daquela que os pais fundadores nos legaram.
Só assim se podem compreender as referências amiúde feitas a uma nova forma de acesso aos tribunais superiores, centrada na carreira plana, e vedada aos juízes de 1.ª instância.
Apenas a Itália conhece a carreira plana, instituída logo no pós-guerra como reforço da independência e da inamovibilidade dos juízes.
Para reforçar a independência, adoptou-se a progressão profissional automática dos magistrados tão-só por antiguidade; para reforçar a inamovibilidade, desligou-se a categoria da função, possibilitando-se aos juízes promovidos aos tribunais superiores que continuassem a julgar na instância de onde partiriam.
A Itália teve, pois, conselheiros da Cassazione a julgar em 1.ª instância porque queriam; mas nunca a carreira plana lhes impediu o acesso aos tribunais superiores na progressão normal da profissão.
A carreira plana tem virtualidades aproveitáveis na conformação e gestão da orgânica dos tribunais; mas daí até justificar uma ausência de carreira para os juízes vai todo o tamanho do mundo.
Será pois - e é sinceramente esta a nossa convicção - sobre o modelo desenhado pelos políticos da primeira geração da 2.ª República, que devemos trabalhar para que a justiça portuguesa melhore e se torne um sector de referência da sociedade portuguesa.
Para que o saneamento efectivo dos nossos tribunais tenha sucesso.
Para que os direitos dos cidadãos sejam definidos em tempo útil como o impõem as Convenções internacionais dos direitos humanos.
E para que ninguém se sinta, afinal, filho de um deus menor.
Luís António Noronha Nascimento.