sábado, maio 07, 2005

07Maio - Recortes da Justiça

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Os atrasos (na reforma) da justiça
POR MARIA DE FÁTIMA MATA-MOUROS, Juiz de Direito
Público, 06 de Maio de 2005
A última semana encerrou com o anúncio de mais medidas para descongestionar os tribunais, enquanto o calendário da justiça adicionava mais um caso a ferir a sua credibilidade. A libertação de condenados e (na hora) acusados de uma morte depressa afogou a boa nova oferecida pelo rápido final atingido no processo de pedofilia nos Açores. E apagou das páginas dos jornais aquilo que nem sequer chegou a dar origem a qualquer reacção, a libertação de uma vintena de detidos pela policia sob a égide do feriado escolhido para a acção: "liberdade". Voltemos, por ora, àquilo que hoje é motivo de escândalo. Não faltarão ocasiões para regressar às "operações liberdade".
Segundo as notícias, condenados terão sido libertados por haverem atingido o limite máximo de prisão preventiva. Limite aquele que, como já ninguém ignora, em Portugal não é tão pequeno quanto isso.
A verdade é que, apesar de longo, não tem sido suficiente para conduzir à condenação definitiva de muitos acusados no nosso país. Especialmente nos casos mais graves que contam com muitos arguidos, ocupam processos extensos e difíceis de investigar e julgar. Tão difíceis que até mesmo a definição do tribunal de julgamento constitui questão controvertida. E não é controvérsia suscitada pelas artimanhas da defesa. Ela parte dos próprios tribunais. De há muito que surgiram vários alertas sobre a necessidade da criação de um tribunal de julgamento com competência especializada para estes processos de criminalidade grave e complexa. Sempre que tive ocasião de intervir publicamente vinquei, essa preocupação, que, repito, não é só minha, nem é só de agora.Todavia, para evitar a incompreensão e indignação populares perante a libertação pelos tribunais de pessoas já condenadas, é preciso ir ainda mais longe.
É preciso repensar todo o instituto das medidas de coacção aplicáveis àqueles que já sofreram condenação em primeira instância, aceitando o tratamento diferenciado de suspeitos, acusados e condenados, estes ainda que à espera da decisão do recurso que legitimamente interpuseram da sua condenação.
Em Portugal, com excepção apenas para a sucessão dos prazos da duração das respectivas medidas de coacção, todas estas situações merecem tratamento legislativo indiferenciado. Sustenta-se que até ao trânsito em julgado da sentença não há verdadeira condenação. Sem dúvida! Mas essa decorrência do direito fundamental ao recurso em nada sairia diminuída pelo tratamento diferenciado daquelas situações. Pelo contrário, a não permissão da sua diferenciação é que em muitos casos inviabiliza aquele direito, por os arguidos, detidos já há anos, preferirem não recorrer da sua condenação para passarem ao regime do cumprimento da pena e poderem gozar a liberdade condicional.
"Garantístico" o nosso sistema? Só formalmente!
Noutros países da Europa, que também respeitam a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o preso condenado que aguarda recurso não é considerado em prisão preventiva. Nem por isso tem menos direitos do que no nosso país. E muito provavelmente o tempo que permaneceu na cadeia sem conhecer a acusação foi muito inferior àquele que permaneceria em Portugal.
É, pois, motivo de verdadeiro escândalo, que o nosso legislador ainda não tenha interiorizado a necessidade de corrigir esta situação, continuando a descansar na asséptica reserva de comentários aos casos pendentes nos tribunais e na cómoda invocação da separação de poderes para, prometendo futuras reformas, afinal deixar tudo na mesma. Como se cada novo caso constituísse uma completa e imprevisível surpresa na aplicação do direito! Mas há quanto tempo se previa que condenados pudessem ser libertados por excesso de prisão preventiva? Quantos casos se verificaram entretanto?
Em Novembro de 2003 denunciei também esta situação no desabafo que me levou a publicar o Sob Escuta. Antes de mim muitos outros o fizeram e depois disso quantos continuaram a fazê-lo com mais veemência e sabedoria. E, no entanto, hoje continuamos todos a escandalizar-nos com idênticas libertações. Mais virão!
Em tempos alguém ligado ao mundo da política observou-me que "a justiça não dá votos". Fiquei surpreendida, pois não consigo entender como uma área que envolve a nossa segurança e a salvaguarda dos nossos direitos possa revelar-se indiferente para o eleitor. Depressa me lembraram que o universo dos juristas não passa de um mundo pequeno. A maior parte dos eleitores continua a não gostar de entrar num tribunal, nem sequer como testemunha e, se alguém lhe detecta o nervosismo, logo desabafa ser aquela a primeira vez.Também eu nunca entrei na Assembleia da República e nunca passeei nos Passos Perdidos. Mas lá por o Parlamento não ser lugar para juizes, nem por isso estes deveriam deixar de fazer ouvir as suas vozes sobre matéria em que seguramente têm muito para dizer: a revelação do exercício diário da aplicação do direito, a demonstração da forma como na prática as linhas ditadas pelo legislador são, ou não, executadas - ou sequer exequíveis. Sem esse acompanhamento em permanência dos ecos que as alterações legislativas ditam na prática forense, bem podem os nossos governantes continuar a reformar a justiça por diploma: a justiça não se decreta. E exemplo disso será a nenhuma diferença que a diminuição das férias judiciais (não critico a medida, apenas a sua escolha como a solução para os males da justiça) ditará na repetição de casos como o que agora causou brado. Os tribunais que, ao abrigo das leis, se declararam incompetentes para julgar o caso não se encontravam seguramente de férias, quando publicarão aquelas decisões!

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