quarta-feira, janeiro 04, 2006

Como prometer e não cumprir !!!

POR DR. ANTÓNIO JOSÉ FIALHO
JUIZ DE DIREITO
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“Há homens que nem sequer se enganam
porque não propõem nada de razoável”
Goethe
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Era uma vez um país onde muito se discutiu e se opinou sobre três meses do ano em que os tribunais estavam fechados e nada se fazia …
… onde os processos não andavam durante esses três meses (como se estivessem preocupados com as razões porque não andavam durante os restantes nove) …
… onde um grupo de privilegiados (assim se dizia) beneficiava de um tempo de férias superior ao de qualquer outra pessoa (excepto os deputados) …
… onde se dizia que as empresas não queriam investir porque os seus litígios não tinham solução durante três meses (como se não houvessem outros países da Europa onde sucedia o mesmo) …
Assim, depois de um discurso feito para as câmaras da televisão, não era possível voltar atrás …
Era preciso acabar com esse estado de coisas e aprovar uma lei onde tudo isso fosse alterado.
Ouviram-se os interessados que, claro está, até nem estavam muito “interessados” em que se fizessem alterações a não ser acabar de uma vez por todas com esse malvado encerramento dos tribunais que prejudicava a economia e a eficácia da justiça.
Ouviram-se outras entidades que disseram que a coisa poderia não funcionar mas não se podia voltar atrás … o discurso estava feito e conhecido e o público poderia não compreender como é que não se avançou com a ideia.
Com o apoio daqueles que queriam ir de férias mais cedo, aprovou-se uma lei que passou a estabelecer que os ditos privilegiados apenas poderiam gozar férias durante o mês de Agosto.
O problema é que este mês apenas tem vinte e um dias úteis (o dia quinze é feriado nacional) e a grande maioria daqueles privilegiados até tem direito a cerca de vinte e cinco a vinte e nove dias úteis de férias por ano.
Como não era possível meter o Rossio na Betesga, estabeleceu-se então que esses privilegiados podiam gozar férias durante um período de quinze dias entre 15 a 31 de Julho de cada ano mas, atenção, teriam que assegurar que outro privilegiado estivesse a substitui-los para assegurar o serviço porque não havia qualquer diminuição do trabalho durante esse período.
É claro que isso vai aumentar a eficácia da justiça uma vez que sempre se mostrou possível a uma pessoa assegurar o trabalho que, normalmente, duas pessoas têm dificuldade em assegurar … é uma regra absolutamente perfeita e que não merece contestação.
Só que, pelo meio disto tudo, esqueceram-se que o gozo das férias pressupõe um conjunto de regras mínimas para o efeito e que, afinal, os tribunais não estavam fechados porque sempre foram assegurados os serviços de turno durante as férias judiciais.
Havia, pois, que encaixar os serviços de turno (que apenas poderiam ser assegurados pelos tais privilegiados e não por máquinas de loto ou tômbolas) com o gozo das férias dos mesmos.
Ainda por cima, os vinte e cinco dias úteis de férias tinham que ser gozados de acordo com determinadas regras que dificultam a harmonia com o serviço de turnos.
Que chatice !!!
No entanto, descobriu-se a solução !!!
Aquelas regras eram impossíveis de encaixar entre si (como sempre havia sido dito por todos os versados no assunto) mas a melhor forma é deixar que eles próprios (os privilegiados) se entendam e se organizem para resolver a “embrulhada” que o autor do discurso e os seus adjuntos tinham provocado.
E aprovou-se ainda na lei que, até à sua entrada em vigor, seriam “adoptadas medidas complementares necessárias para assegurar a implementação da redução do período de férias judiciais, designadamente no que respeita ao serviço urgente efectuado durante as férias judiciais” (desculpem o mau português mas apenas me limitei a citar o artigo 8.º da Lei n.º 42/2005, de 29 de Agosto).
Esta lei entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2006 mas não foram adoptadas quaisquer medidas complementares para aquele efeito.
Porque será ?
Será porque um interrogatório judicial de arguido detido deve continuar a ser assegurado no prazo de quarenta e oito horas, sob pena de estar verificada uma detenção ilegal e injustificada ?
Será porque deverá ser assegurada com a necessária urgência a possibilidade de sujeição de uma criança ou jovem a medidas de protecção, assistência ou educação quando estejam em risco os seus interesses ?
Será porque pode haver necessidade de decidir sobre o internamento compulsivo de pessoa afectada de anomalia psíquica quando esteja em causa a segurança de terceiros ?
Será porque uma providência cautelar deve continuar a ser assegurada com urgência nas situações em que esteja em causa uma lesão grave e dificilmente reparável do direito violado ?
Será porque existe um conjunto determinado de processos que o legislador entendeu revestirem carácter urgente (processos criminais em que existam arguidos detidos ou presos ou em que as diligências de prova devam ser realizadas de imediato, adjudicações em processo de expropriação, incidentes de caução, insolvência, acções de arrendamento rural, etc) e que correm em férias judiciais e sempre foram acautelados durante a prestação do serviço de turno ?
É por isso que a redução do período de férias judiciais no Verão, ao invés de resolver problemas, veio criar outros que não existiam antes do tal discurso feito perante as televisões.
Com efeito, se a redução das férias judiciais no Verão se vai traduzir num aumento de eficácia de dez por cento (ainda se está para saber como), porque não eliminar completamente as férias judiciais e permitir aos tais privilegiados gozar as suas férias quando bem entendessem, ao invés de ficarem prejudicados na compressão do período de férias e não conseguirem beneficiar desse direito constitucional como qualquer outra pessoa ?
Se não se mostra possível concretizar em termos adequados o discurso feito perante as televisões, porque não reconhecer o erro e corrigi-lo ?A resposta encontrei-a na frase do poeta que reproduzi no início deste texto e que volto a recordar a todos aqueles que me leram com paciência: - “Há homens que nem sequer se enganam porque não propõem nada de razoável”.

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