sexta-feira, janeiro 27, 2006

Horas mortas ?

1. O “julgamento” jornalístico.
A Senhora Jornalista, Dra. Sofia Pinto Coelho, na sua habitual crónica no Expresso, fazendo referência a um post deste blog Verbo Jurídico (desde já agradecendo à mesma a sua citação), a propósito do facto dos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça (sem destacar que são apenas os das Secções Criminais, sendo este um elemento relevante), terem deixado de enviar as súmulas dos seus acórdãos [não acordões] para a base de dados do Ministério da Justiça (trabalho gratuito dos mesmos), faz comparações com a actual postura dos técnicos da Polícia Judiciária e rotulando de aparente absurdo essas “queixas”, para após acrescentar que “(…) não são. De facto, na justiça portuguesa trabalha-se muito. Todavia, produz-se pouco. Basta olhar para os julgamentos. No «caso Moderna», por exemplo, as audiências, marcadas para as 9h30, raramente começavam antes das dez e tal. A meio da manhã fazia-se o usual intervalo para o café e pouco depois do meio-dia ia-se almoçar. Da parte da tarde, a marcação para as 14h raramente era cumprida e por volta das 17h já todos estavam a ajeitar o casaco para se ir embora. Na generalidade dos julgamentos, é isto que acontece: parece que se trabalha muito, mas, vendo bem, há muitas «horas mortas»”.
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2. Os Juízes só fazem julgamentos ?
Perante a afirmação supra enunciada, importa questionar como, num Juízo com uma pendência de cerca de 3000 ou mais processos (quando todos os indicadores de entidades externas apontam como máximo suportável o número de 700 a 750), estando o Juiz no horário que a Dra. Sofia Pinto Coelho referencia em audiência de julgamento, surgem despachadas as dezenas (quando não mais de uma centena) de processos por dia? E em que horário são proferidos os despachos saneadores e as sentenças ?
Será que ainda há quem pense que os Juízes só presidem a audiências de julgamento, das 09:00 às 12:30 e das 14:00 às 17:00 e que depois todo o demais trabalho jurisdicional surge elaborado por artes mágicas ou por automatismo informático… ?
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3. Horas "vivas"
Aquilo que um cidadão desconhecedor da realidade dos Tribunais pode chamar de “horas mortas” são os minutos de maior produtividade que se possa imaginar. Com efeito, enquanto a chamada é feita pelo funcionário, enquanto os Mandatários encetam conversações para um eventual acordo, enquanto se aguarda pela chegada de partes, testemunhas ou peritos, o Juiz, em regra, encontra-se no gabinete a despachar toda a panóplia de requerimentos, incidentes e actos processuais.
Por isso, ao invés de se tratarem de “horas mortas” são verdadeiras “horas vivas”, de grande laboração, correspondente a uma gestão com o maior aproveitamento possível do tempo disponível enquanto a audiência de julgamento não tem (ou não pode ter) o seu início. E muito desse trabalho, embora irreconhecido, incide precisamente sobre aspectos cruciais dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, relativamente aos quais estes aguardam uma decisão.
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4. O tempo de espera
É verdade que raramente uma diligência ou audiência de julgamento começa à hora em que se encontra marcada. Mas esse tempo de espera tem a sua razão de ser, tantas vezes desconhecida, mas que não poucas vezes acaba por se afigurar positivo para a justa composição da causa.
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4.1. Com efeito, à hora marcada o funcionário judicial faz a chamada das pessoas que tenham sido convocadas. A realidade social de hoje é diferente de há uma década atrás. O trânsito tem-se tornado num flagelo e a dificuldade de estacionamento não apenas dificulta como agrava a pontualidade. Por isso, muitas vezes o funcionário judicial carece de fazer a chamada duas, três e mais vezes para se assegurar quais das pessoas convocadas que se encontram efectivamente presentes para que não sejam suscitados incidentes processuais que só agravariam a delonga do processo.
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4.2. Por outro lado, por força da própria disposição legal, o Juiz deve promover a conciliação das partes. Ora, os processos judiciais – por o serem – envolvem a cristalização de um litígio, com posições extremadas, não sendo fácil obter uma transacção de ânimo leve.
É que os julgamentos não são simples entrevistas. Num processo judicial pode discutir-se desde a liberdade de uma pessoa, até à manutenção ou perda de direitos patrimoniais ou de avultados valores pecuniários.
Muitas vezes é precisamente nos momentos que antecedem a audiência de julgamento que os Mandatários se conhecem pessoalmente e encetam conversações no sentido da obtenção de um acordo. E essa diligência pode ser crucial para a resolução do litígio. Mas a discussão de direitos e deveres implica tempo – tempo esse que jamais pode ser considerado perdido, pois a aproximação das partes é sempre benéfica.
Por isso, quando o acordo não é obtido, necessariamente a audiência de julgamento, precedida que foi desses actos (processualmente previstos), não pode começar à hora marcada. Mas este facto faz parte da própria natureza dos processos judiciais e a sua abolição pura e simples impediria a obtenção de tantos acordos que têm ocorrido e que tanto benefício tem trazido para a paz social, para a resolução (final) do litigo (menos actos a praticar, menos recursos) e, consequentemente, para o bem da própria administração da justiça.
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4.3. Acresce finalmente que, face ao aumento exponencial da litigância, salvo situações muito específicas, uma boa gestão da agenda desaconselha que apenas se marque uma diligência para uma determinada hora. Com efeito, existem vários fundamentos legais que permitem o adiamento da audiência de julgamento, os quais são alheios (exteriores) ao Tribunal ou ao Juiz, designadamente a falta de Mandatário por impedimento noutra diligência judicial, a falta na 1.ª data do arguido, a falta de testemunha de que não se prescinda, a falta de concordância prévia de agendas (nem sempre possível), etc.. Ora, perante tal panóplia de fundamentos legais de adiamentos, é arriscado marcar apenas uma diligência, pois o tempo útil deve ser aproveitado ao máximo, designadamente para a realização das audiências de julgamento e outras diligências judiciais. A prática dos actos respectivos (tentativas de conciliação, suspensão da instância ou adiamento) implica igualmente o dispêndio de tempo nesses processos – que necessariamente implicam que a diligência que se efectuará apenas se inicie após a prática dos actos naqueles outros.
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5. Fenómenos adversos à produtividade
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5.1. Inexistência de assessoria
Aponta-se paulatinamente que o número dos Juízes em Portugal é, em média, superior aos demais países da União Europeia. O certo, porém, é que os juízes da generalidade dos países europeus têm assessores, com competência técnica adequada, que praticam todos os actos de expediente, assim como detêm no seu gabinete um funcionário privativo para todos os actos inerentes ao exercício das suas funções, ficando o Juiz unicamente com a função de julgar e decidir. Em Portugal, é o Juiz que tem de assumir a prática de todos os actos burocráticos, de expediente, administrativos e processuais, fazendo de assessor e secretário de si próprio, além dos actos jurisdicionais que tem de praticar, sem qualquer assessor ou funcionário privativo.
Ora, o Juiz deveria ter a sua função circunscrita ao exercício do munus jurisdicional decisório, isto é, despachos com relevo directo dos direitos fundamentais e para o julgamento de facto e de direito da causa. A generalidade dos demais actos poderia ser efectivada por assessores, licenciados em direito, que subordinados funcionalmente à direcção assegurada pelo Juiz, permitiriam libertar este para aquilo que efectivamente é a nobreza da função: julgar. Desta forma, seria possível aumentar o número de julgamentos (o juiz estaria liberto do despacho burocrático e centraria a sua actividade na função de julgar) e, consequentemente, a celeridade da justiça. E, por outro lado, o Estado poupava recursos, na medida em que a remuneração que seria paga aos assessores seria sempre inferior à de um Juiz, razão porque a ratio entre o valor/tempo/ serviço dos assessores seria sempre mais económica do que aquela que é paga pelo trabalho burocrático escravizante do Juiz.
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5.2. Falta de cultura para a resolução alternativa de litígios
Em Portugal, não existe ainda uma cultura dos cidadãos no recurso à mediação, arbitragem, julgados de paz e demais formas de resolução alternativa dos litígios. A cada vez maior consciencialização dos direitos (que é de louvar), com a manutenção de um sistema tradicional organizativo relativamente ao qual os Juízes não têm qualquer intervenção directa, quer porque as leis de processo, de organização judiciária, de regulamentação e respectivos actos administrativos de execução são todos de competência de outros órgãos de soberania, têm conduzido ao estrangulamento do sistema, sem que tenha havido a necessária atenção (por parte do poder político) para o investimento sério e empenhado na Justiça.
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5.3. Falta de autonomia administrativa e financeira
O Poder Judicial, ao contrário dos demais Poderes constitucionais, não está dotado de condições administrativas e financeiras próprias, sabendo que o Conselho da Europa é favorável à autonomia administrativa e financeira dos Tribunais, porém em Portugal a simples aquisição de qualquer equipamento, por mínimo que seja, está dependente da boa vontade de um outro órgão de soberania, o Governo (através do ministério da Justiça). O mesmo deve afirmar-se quanto ao Conselho Superior da Magistratura: há mais de três anos que o Conselho Superior da Magistratura apresentou um projecto de Lei Orgânica, sem a qual esse órgão constitucional não pode efectivamente exercer as suas funções, mas essa Lei Orgânica, ainda que prometida, tem sido sempre mantida na gaveta pelos sucessivos Governos.
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5.4. Uma lei de processo arcaica
Em alguns países da Europa, as decisões podem ser proferidas verbalmente, mediante súmula do dispositivo (condenação ou absolvição), o que diminui significativamente o trabalho e aumenta de forma relevante a produtividade. Em Portugal, as decisões têm que ser profusamente fundamentadas, sob pena de nulidade, fazendo o Juiz de escriturário e não tendo qualquer assessor para pesquisa de doutrina jurisprudência. A lei do processo é, assim, inimiga da produtividade.
Acresce as sucessivas alterações legislativas que tornam os códigos e demais diplomas uma verdadeira manta de retalhos, contrária à confiança e segurança jurídicas, assim como provocando divergências interpretativas, com o exponencial aumento dos recursos.
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Concluindo:
a) É verdade que muito se trabalha nos Tribunais.
b) A produtividade podia ser maior, mas em regra não depende de qualquer maior empenho ou sacrifício dos Juízes, magistrados ou funcionários porque esse empenho e sacrifício está no grau máximo, melhor já ultrapassou a medida do humanamente aceitável.
c) Mas seguramente a produtividade podia ser muito menor sem esse empenho e sacrifício de quase escravatura que tem sustentado um sistema que não corresponde ao que os Juízes sempre denunciaram como adequado, mas que pelo seu espírito de abnegação e de respeito pelos direitos de cidadania e da elevação da res pública têm procurado não desvirtuar.
d) Mas há momentos em que é necessário dizer que “o rei vai nu”, perante aviltantes ataques à independência (garantia final dos cidadãos) de quem tanto tem dado ao Estado de Direito sem pretensão de condecorações, cargos ou benesses.

3 comentários:

verbojuridico.net disse...

Caro Comentador "Galo":
O que me move, neste caso, é o esclarecimento dos cidadãos que podem ser induzidos, numa leitura superficial, a acreditar como verdadeira uma opinião, sem explanação da abrangência de factos relevantes que são sempre reiteradamente omitidos.

josé disse...

Entre estas duas atitudes- a do galo e a do autor do blog- perpassa toda a perplexidade de quem lê a notícia que foi "dada" pela Sofia Pinto Coelho, autora de um livro sobre problemas de justiça e que afinal vem provar com este texto que pouco percebeu desses problemas, porque não entende coisas básicas do funcionamento deste sistema de Justiça criado por outros e no qual trabalham os aplicadores, sem que o possam mudar a seu bel prazer.
A perplexidade pode conduzir a atitudes como a do "galo" que entende não serem devidas explicações pelos dislates e disparates que se vão ouvindo, vendo e lendo.

Subscrevo a atitude do autor do blog. Mesmo correndo o risco de poder ser acusado de voluntarismo e de protagonismo, os magistrados deveriam fazer publicidade das suas acções e do seu trabalho que não envergonha ninguém e seria a melhor forma de acabar com certos mitos.
AS pessoas em geral e até aquelas que trabalham nos tribunais, não sabem exactamente o que se faz por lá. Chega-se ao ponto de um juiz não perceber o que faz exactamente o MP que fica dois corredores ao lado...e daí surgem equívocos graves que condicionam opiniões desajustadas da realidade.
Ora este desconhecimento gera atitudes hostis sempre que aparecem problemas no funcionamento do sistema.

Estou em crer que este desconhecimento generalizado é a causa directa e talvez suficiente de toda a atitude de hostilidade da opinião pública para com a magistratura actualmente e como o comprovam os estudos de opinião.

Assim, a questão que se coloca, é simples:

Os magistrados preferem que se lhes faça justiça ou deverão ficar indiferentes a quem ladra, por saberem que a caravana passa sempre?

Por mim, prefiro a primeira hipótese. Aliás, parece-me que também o autor do blog, partilha dessa opinião.

josé disse...

Mas há um assunto que a Sofia Pinto Coelho sabe porque a afectou directamente:

Aqui há uns anos ( 7 ou oito) era testemunha num processo crime que corria termos em Trás os Montes.
FOi notificada em Lisboa, para comparecer e faltou, não justificando a falta de acordo com as regras de processo penal que se fizeram à pressa para acabar com os desmandos das faltas justificadas por dá cá aquela palha. FOi vítima dessa então recente alteração legislativa e viu-se com uma "soma" para pagar e um mandado de detenção nos termos do artº 116º nº 2 CPP.

O que fez então o juiz criminal da comarca que ficava a mais de 300 km de distância?

Marcou a nova diligência para as nove da manhã!
E mandou cumprir o mandado de detenção...que redundou na detenção da mesma, pela PSP, no dia anterior, á noitinha, para ser possível seguir de manhãzinha para a comarca em causa( a didligência era ás 9h, parece).
SOube-se depois que nem houve diligência...

Pergunta-se; que imagem projecta do sistema de justiça um magistrado que actua dessa forma, sem atender ao caso particular e sem ligar às consequências de uma lei de excepção? Bem, pode sempre dizer "dura lex, sed lex". Era aliás, esse, o título da crónica inflamada do A. Marinho, no Expresso...

O caso foi notícia na SIC, relatada então pelo seu já separado marido, José Carvalho.
A notícia foi apresentada sobriamente e bem escrita.
Sobrou depois uma imensa pena destas atitudes irreflectidas dos "operadores judiciários" que fazem mais para denegrir a imagem da justiça do que muitas coisas mais graves e mais sérias.